Entre Séculos e Almas

 




Entre Séculos e Almas

Há séculos, em 1789, o mundo assistiu à queda de um império e ao nascimento de um novo tempo. A Revolução Francesa não foi apenas um evento político, foi um terremoto espiritual que separou o velho do novo, a fé da razão, o altar do trono. No meio desse turbilhão, homens comuns e nobres se confundiram entre vítimas e algozes. E, como em toda revolução, a liberdade sonhada foi regada a sangue.

Entre os nomes esquecidos nas páginas da história, há um que permanece de pé: François Athanase Charette de La Contrie. Um oficial da Marinha Real, veterano da Guerra da Independência Americana, que um dia trocou os mares pelos campos da França e o silêncio pela liderança de um povo em desespero. Charette tornou-se o símbolo da Guerra da Vendeia, levante contrarrevolucionário dos que se recusaram a aceitar uma república que, em nome da razão, perseguiu a fé e destruiu igrejas, conventos, e famílias inteiras.

Os historiadores o chamam de realista, contrarrevolucionário ou rebelde. Mas os camponeses o chamavam simplesmente de “Monsieur de Charette”, o capitão que lutava por eles e com eles. Cercado, ferido, traído e finalmente fuzilado, recusou a venda nos olhos. Morreu em pé, olhando a morte de frente. E antes de cair, segundo contam, teria pronunciado as palavras que selaram seu destino e o transformaram em mito.

“Hoje eu morro em pé, olhando a morte de frente, e vou até vocês, aqueles que comandei, aqueles que amei, os que ficaram pelo caminho, sem nome, sem sepultura.”

Dois séculos depois, num dia qualquer, não mais que um dia qualquer, essas mesmas palavras me vieram à mente.

Sem contexto, sem razão. Como se tivessem sido sopradas do fundo do tempo. E só dias depois, ao assistir ao filme Vencer ou Morrer, descobri que as mesmas frases encerravam a história daquele homem.

Foi um instante breve, mas profundo. Senti que algo em mim se reconhecia.

Não se tratava de reencarnação, visões ou misticismo, nada disso.

Era memória de alma, aquilo que Jung chamaria de ressonância arquetípica, quando o espírito toca em algo que já foi, e a lembrança não vem pela mente, mas pelo coração.

Há pessoas que carregam heranças invisíveis, não de sangue, mas de propósito. Talvez o que animou Charette em 1796 não tenha morrido com ele. Talvez certas causas não pertençam a um tempo, mas a uma sequência de vidas que as mantêm vivas.

A coragem diante do impossível. A lealdade àquilo que o mundo chama de ultrapassado. A recusa em ajoelhar-se diante do que é indigno.

Não é sobre guerra. É sobre dignidadeÉ sobre permanecer em pé quando todos se dobram. É sobre compreender que algumas almas não se medem pela cronologia, mas pelo eco que deixam.

E se por um instante, apenas um, as palavras de um homem morto há mais de duzentos anos encontram morada na minha voz, não é por acaso. É porque, de alguma forma, as causas justas encontram abrigo em quem ainda tem coragem e sensibilidade de senti-las.

Por isso escrevo, apenas para lembrar. Que morramos, se preciso for, de péE que o espírito da Vendeia, o espírito dos que amaram mais a verdade que a própria vida, siga nos lembrando que a alma humana é antiga demais para se dobrar aos modismos do tempo.

Talvez o tempo não se mova em linha reta, quem sabe em círculos, e nesses círculos, as almas que um dia se tocaram voltam a se buscar. Às vezes, o eco do tilintar de uma espada antiga ressoa no peito de quem apenas segura uma caneta em novos tempos. Às vezes, o olhar de uma mulher em 2025 acende a mesma chama que ardia nas trincheiras de 1796. E então, tudo o que parecia distante, os campos da Vendeia, o fuzilamento ao amanhecer, o juramento soprado ao vento volta a pulsar dentro de nós, como se o universo ou os universos, generoso, devolvesse um reencontro que ficou suspenso no tempo.

Não sei se é lembrança, promessa ou destino, mas há algo que vibra além da razão. Como se, ao escrever estas linhas, eu tocasse de novo a mão de quem esperei sem saber, e o passado inteiro se curvasse para que o amor pudesse, enfim, cumprir-se. Há séculos, morremos em pé. Agora, vivemos de novo e é o amor, não a espada, quem conduz a última batalha. Porque há reencontros que o tempo não apaga, há almas que jamais se perdem. Apenas dormem, até que uma palavra desperte o que o universo selou, que tudo o que fomos, lutamos e perdemos um dia, encontra agora seu repouso... no olhar de quem enfim reconhecemos.

Por C. J. Vellasques 

Primavera de 2025

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