Pedaço de saudade
Pedaço de saudade.
Nasci lá onde o céu beija a terra, nas vastas canhadas destes costões de Serra, herdei o tiro de laço tal qual meu pai também herdou do seu, e da minha mãe a poesia da qual sou eternamente prisioneiro cujo coração sempre reconheceu.
Terra pra chamar de minha, não sei se tive, talvez a vastidão deste Planalto seja o que Deus me deu, pois trago o legado do jagunço, com seu facão de guamirim, me toca o sangue encarnado do caboclo peleador que ecoa no Contestado, pulsando forte em mim.
Correndo feito o rio preto sempre bravo no peito que a vida esculpiu, sou dos que o destino endureceu, nas histórias que quase sumiu. Nos pinheirais alheios, onde os dias lentos se desfizeram, cuidei destas florestas como minhas, embora nunca me pertenceram.
Vem a história do dia, um desafio me foi dado. Um taura preto, testa e uma pata branca, o picaço aclamado. Cavalo crioulo chileno, largado, mas jamais renegado. Daquele guacho, um companheiro sagrado.
De rodeio em rodeio com ele avancei, grandes prêmios, lado a lado, conquistei. Laçador me tornei, honra de meu avô herdei, na montaria que me deixou, com orgulho reinei.
Vi neste cavalo minha luta, reflexo fiel, estações a fio, na cancha, buscamos o céu. Força no olhar, na busca do freio ideal, batizei-o de Soledade, mas picaço era seu sinal.
Juntos, proezas belas enfrentamos, flor e espinho, na liberdade galopamos. Terra batida sob nossos passos marcados, em cavalgadas, estradas, destinos traçados.
Eu falava, ele entendia, laço invisível, o bicho sente uma borboleta no lombo por certo sentiu minha alma indomável, nosso perfume, essência de mato, ele, relinchando, parecia querer dar seu relato.
Nessa lida, a estrada era nossa morada, cada passo, um desafio, na sina do passador encarnada. Sonhei com um rancho exatamente qual tenho hoje, um refúgio fraterno, um abrigo para alma e corpo, em terra firme, embora na represa de Volta Grande nadei e cortei de ponta a ponta com braçadas eternas.
Pouco tive naquelas épocas, mas ao sentir o cheiro da terra era meu reino, porém, num rodeio, senhores e senhoras, me ofereceram um preço pelo meu soledade. Recusei, mas a canha estava de mão em mão, e a palavra assim como flecha não tem volta após lançada, "Podem dobrar senhores," disse, "mas vou logo dizendo, não paga o passo do Soledade, mas se conseguirem amontoem as sacolada."
Compraram meu cavalo, tristeza engoli, grandes momentos lembrados, no coração explodi, a vida gira, e após anos sem vê-lo, encontrei-o, perto das terras de um amigo que era conhecido de Soni Rascheck, assim o velho e nobre, voltou para mim, um reencontro com o chasque.
Sem mais lidas, nos campos o deixei, até o dia final, a despedida que enfrentei. Meu compadre avisou, teu cavalo já não se erguia, fui ao seu encontro, numa viagem que a alma sabia.
Horas conversei com meu amigo de jornada, em meu colo, sua cabeça, a partida selada. Enterrei meu companheiro, sob um pinheiro a descansar, esperando o dia de nos campos celestiais cavalgar.
Com meu cachorro Cigano, os cascos nas nuvens soarão, como raios brilhantes, na eternidade sons de trovão. Tropel como tempestades, correremos sem fim, rumo à última morada, onde o destino se finda assim.
Nossas histórias aqui ficam, e meu apero boiadeiro, ao herdeiro que se identificar, com ele ficará, um legado verdadeiro. Eu, igual um federalista a vagar, com história pra contar, em versos de invernada, meu sentimento a entoar.
Um dia verão, a lida que tanto amei, na trilha que percorri, meu dom encontrei. Um pedaço de chão, na lavoura de Ana Ruzanoski Tureck me dediquei. Nessa terra, cantarolava ao semear com amor, e a Deus sempre agradecerei.
Agora, sou mais que laçador ou poeta do tempo, pois carrego em minhas lembranças o dia que fui agricultor, na lida do dia a dia, sem querer mais que o respeito do sol e da chuva. Não busco delicadeza, só um lugar nos causos da minha gente, na terra que amo. Que registrem nos anais destes rincões um pouco do sentimento que carrego. Nessa caminhada, carrego comigo a essência jagunça, as memórias de Soledade, meu parceiro, cavalo de tantas andanças.
Por C. J. Vellasques
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